Por Mário Scheffer e Lígia Bahia
No jargão dos planos de saúde, sinistro é a perda financeira a cada
demanda de um cliente doente. Já a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)
foi tomada pelo sinistro no sentido popular do termo --ou seja, aquilo que é
pernicioso.
Dois
ex-executivos de planos de saúde --um serviu à maior operadora do país e outro,
à empresa líder no Nordeste-- acabam de ser nomeados diretores da ANS.
Desde sua
criação, há 13 anos, a agência foi capturada pelo mercado que ela deveria
fiscalizar. As medidas sugeridas para coibir o conflito de interesses na ANS
--frise-se, um órgão público sustentado com recursos públicos-- sempre foram
contestadas sob o argumento de que tais pessoas "entendem do setor".
Assim, a
agência instalou em suas entranhas uma porta giratória, engrenagem que destina
cargos a ex-funcionários de operadoras que depois retornam ao setor privado.
A atuação
frouxa da ANS, baseada no lucro máximo e na responsabilidade mínima das
operadoras, tem a ver com essa contaminação. Impunes e protegidos pela
fiscalização leniente, os planos de saúde ao fim restringem atendimentos e
entregam emergências lotadas e filas de espera para consultas, exames e
cirurgias.
As empresas
deixaram de vender planos individuais, pois têm o aval da ANS para
comercializar planos coletivos a partir de duas pessoas, com imposição de
reajustes abusivos e rescisão unilateral de contrato sempre que os usuários
passam a ter problemas de saúde dispendiosos. Sob o olhar complacente da ANS,
dão calote no SUS, pois não fazem o ressarcimento quando seus clientes são
atendidos em hospitais públicos.
Os planos de
saúde doam recursos para candidatos em tempo de eleição que, depois de eleitos,
devolvem a mão amiga com favores e cargos. Há coincidências que merecem
explicação.
Em 2010, as
operadoras ajudaram na eleição de 38 deputados federais, três senadores, além
de quatro governadores e da própria presidente da República. Da empresa que doou
legalmente R$ 1 milhão para a campanha de Dilma Rousseff, saiu o nome que
presidiu a ANS até 2012.
O plano de
saúde que doou R$ 100 mil à campanha de um aliado --o governador do Rio de
Janeiro, Sérgio Cabral-- emplacou um diretor da agência que, aliás, acaba de
ser reconduzido ao cargo.
Em 1997, o
texto do que viria a ser a lei nº 9.656/98, que regula o setor, foi
praticamente escrito por lobistas dos planos. Em 2003, na CPI dos Planos de
Saúde, as empresas impediram investigações. Em 2011, um plano de saúde cedeu
jatinho para o então presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maia (PT-RS), em
viagem particular.
Quase mil
empresas de planos de saúde que atendem 48 milhões de brasileiros faturaram R$
93 bilhões em 2012. Com tal poder econômico, barram propostas de ampliação de
coberturas, fecham contratos com ministérios e estatais para venda de planos ao
funcionalismo público, definem leis que lhes garantem isenções tributárias. E
se beneficiam da "dupla porta" (o atendimento diferenciado de seus
conveniados em hospitais do SUS) e da renúncia fiscal de pessoas físicas e
jurídicas, que abatem do Imposto de Renda os gastos com planos privados.
Agora as
operadoras bateram às portas do governo federal, pedindo mais subsídios
públicos em troca da ampliação da oferta de planos populares de baixo preço
--mas cobertura pífia.
No momento
em que os brasileiros foram às ruas protestar contra a precariedade dos
serviços essenciais, num rasgo de improviso os problemas da saúde foram
reduzidos à falta de médicos. O que falta é dotar o SUS de mais recursos,
aplicar a ficha limpa na ocupação de cargos e eliminar a promiscuidade entre
interesses públicos e privados na saúde, chaga renitente no país.
MÁRIO
SCHEFFER, 46, é professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Conselho Diretor do
Idec; LÍGIA BAHIA, 57, é professora do Instituto de Saúde Coletiva da
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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