sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

NECESSIDADE DE REGULAÇÃO INTEGRAL DOS PLANOS COLETIVOS PELA ANS






1. DA COMPETÊNCIA DA AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE

                        A defesa dos consumidores, como é cediço, é princípio norteador da ordem econômica nacional, expressamente garantido no art. 170, V, da Constituição de 1988. Por isso, é imprescindível para o desenvolvimento de qualquer atividade econômica a observância dos interesses dos consumidores, reconhecidamente vulneráveis no mercado de consumo (art. 4º, I, Código de Defesa do Consumidor). Tal assertiva tem ainda maior valor se considerado o âmbito dos serviços públicos, ainda que de prestação privada, dada a natural relevância de serviços desta natureza. Neste diapasão, cumpre salientar ser direito básico do consumidor a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral (art. 6º, X, Código de Defesa do Consumidor).
               É incontroversa a natureza pública dos serviços de saúde, ainda quando oferecido por instituição privada. Não é outra a lição do eminente Ministro Eros Roberto Grau:

"(...) o que torna os chamados serviços públicos não privativos distintos dos privativos é a circunstância de os primeiros poderem ser prestados pelo setor privado independentemente de concessão, permissão ou autorização, ao passo que os últimos apenas poderão ser prestados pelo setor privado sob um desses regimes.

Há, portanto, serviço público mesmo nas hipóteses de prestação dos serviços de educação e saúde pelo setor privado. Por isso mesmo é que os arts. 209 e 199 declaram expressamente serem livres à iniciativa privada a assistência à saúde e o ensino - não se tratassem, saúde e ensino, de serviço público, razão não haveria para as afirmações dos preceitos constitucionais.

Não importa quem preste tais serviços - União, Estados-membros e Municípios, ou particulares; em qualquer hipótese haverá serviço público."[1] (grifo nosso)    
                       
                        Como referido pelo mestre Eros Grau, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu, em seu art. 199, a assistência à saúde como serviço público de livre exploração pela iniciativa privada. No art. 197, salientou a relevância pública de todas as ações e serviços de saúde, de modo que cabe ao Poder Público dispor, através de lei, acerca da regulamentação, fiscalização e controle de serviços desta natureza.
                        Neste contexto , emerge o amplo mercado de planos e seguros de saúde no Brasil, garantindo atendimento na rede privada a consumidores destes produtos. As operadoras de planos e seguros, portanto, atuam na intermediação e na viabilização do atendimento dos consumidores na rede médico-hospitalar privada, assumindo os ônus do custeio ou reembolso dos atendimentos realizados e tendo como contraprestação o pagamento periódico realizado pelos consumidores, ainda que não haja efetiva utilização dos serviços à disposição.
                        Em obediência ao mandamento constitucional supracitado, como forma de regular o relevante mercado de assistência suplementar à saúde e garantir o interesse dos consumidores, editou-se a Lei 9.961/2000, instituidora da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Prescreve a referida lei, em seu art. 1º:

"Art. 1o É criada a Agência Nacional de Saúde SuplementarANS, autarquia sob o regime especial, vinculada ao Ministério da Saúde, com sede e foro na cidade do Rio de Janeiro - RJ, prazo de duração indeterminado e atuação em todo o território nacional, como órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que garantam a assistência suplementar à saúde."

                        A criação da ANS, pois, teve como finalidade a delegação a esta autarquia da atividade regulatória, normativa e fiscalizadora no âmbito da assistência suplementar à saúde. Tais atividades, não é demais ressaltar, foram constitucionalmente impostas ao Poder Público. Sobre a importância da função normativa desempenhada pela ANS, é válida a colação de observação de renomado autor:

"(...) a ANS não se limitará a exercer uma forte fiscalização do cumprimento de supostas normas preestabelecidas; grande parte de sua atividade consistirá na fixação continuada destas normas, que incidirão não apenas nas relações das operadoras dos planos de saúde com o Poder Público, como nos mais relevantes aspectos das relações contratuais destas com os seus clientes (...)"[2] (grifos nossos)

                        Em complementação ao regramento citado, alteração realizada na Lei 9.656/1998, que dispõe sobre planos e seguros de saúde, instituiu:

"Art. 1º, § 1o. Está subordinada às normas e à fiscalização da Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS qualquer modalidade de produto, serviço e contrato que apresente, além da garantia de cobertura financeira de riscos de assistência médica, hospitalar e odontológica, outras características que o diferencie de atividade exclusivamente financeira (...)."

               É de se entender, portanto, a total submissão dos produtos oferecidos por operadoras de planos de saúde ao poder normativo e regulador da ANS. Nas leis específicas determinadoras da competência da Agência não qualquer ressalva à atuação da referida autarquia no que tange à forma de contratação do plano de saúde, se individual ou coletiva, se por pessoa física ou pessoa jurídica. Com efeito, delegou-se competência plena à ANS para regular e regulamentar a atividade das entidades atuantes no mercado de saúde suplementar, sempre no intuito de evitar a atuação abusiva de tais instituições nas suas relações com os consumidores.
               Por isso, é razoável a inferência de que a necessidade de atuação da ANS decorre principalmente de dois fatores, quais sejam: a) a relevância do mercado de saúde suplementar, graças à natureza pública do serviço de prestação de assistência à saúde; b) a defesa do consumidor, princípio constitucional da ordem econômica. Não há, nas leis atinentes à competência da ANS, qualquer restrição à atuação da Agência relacionada ao tipo de contrato firmado com os consumidores, se de índole individual ou coletiva[3], de forma que todos os consumidores de produtos atinentes à assistência à saúde suplementar devem ser amplamente protegidos pela atuação da ANS.
               Apesar da delegação legal, entretanto, observa-se resistência da ANS em proceder à regulação da integralidade do mercado de assistência suplementar à saúde, tendo em vista a continuada negação da Agência à regulamentação dos reajustes nos planos de saúde coletivos. Isto posto, cumpre salientar a expressa designação de competência à ANS para a regulamentação de reajustes e revisões de prestações devidas por consumidores às operadoras de planos de saúde:

"Art. 4o Compete à ANS:
(...)
XVII - autorizar reajustes e revisões das contraprestações pecuniárias dos planos privados de assistência à saúde, ouvido o Ministério da Fazenda;
XVIII - expedir normas e padrões para o envio de informações de natureza econômico-financeira pelas operadoras, com vistas à homologação de reajustes e revisões;"

               A negativa de regulamentação dos reajustes nos planos de saúde coletivos não se ancora em qualquer pressuposto lógico ou jurídico válido. O legislador, ao delegar a relevante competência acerca da regulação (em todos os seus aspectos) dos planos de saúde à ANS não fez qualquer ressalva quanto aos planos coletivos ou quanto aos reajustes aplicáveis a esses.
               Ora, os planos de saúde podem ser considerados gênero, do qual são espécies o plano individual e o plano coletivo. Estatuindo a ANS "como órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que garantam a assistência suplementar à saúde" (art. 1º, Lei 9.961/2000), o legislador pretendeu conferir plena competência à Agência, de modo que fossem reguladas todas as atividades garantidoras da assistência suplementar à saúde, em todos os seus aspectos, independentemente da feição individual ou coletiva dos contratos estabelecidos para gerar obrigações atinentes a tais atividades.
               Não se pode interpretar restritivamente a imposição legal, pretendendo supor que o legislador quis dizer menos do que efetivamente disse. Em exercício lógico, pode-se considerar que: a) à ANS cabe regular, normatizar, controlar e fiscalizar as atividades (todas as atividades) que garantem a assistência suplementar à saúde; b) a oferta de planos de saúde coletivos por instituição privada é atividade garantidora da assistência suplementar à saúde; c) os reajustes periódicos nos planos de saúde são objeto da competência normativa da ANS (art. 4º, XVII, Lei 9.961/2000); como resultado, é de competência da ANS a regulamentação acerca dos reajustes periódicos nos planos de saúde coletivos oferecidos ao mercado.
               Se o legislador quisesse fazer escapar do âmbito de competência da ANS algum aspecto da regulação dos planos de saúde coletivos, assim teria disposto expressamente. Não o tendo feito, a escorreita interpretação da Lei 9.961/2000 conduz ao entendimento de que cabe, sim, à ANS regular, normatizar, controlar e fiscalizar integralmente as relações contratuais coletivas entre os consumidores e as operadoras de planos e seguros de saúde, inclusive no tocante à regulamentação dos reajustes impostos pelas operadoras, notadamente nos planos coletivos por adesão.

2. DOS EFEITOS DA OMISSÃO DA ANS NA REGULAÇÃO DOS PLANOS DE SAÚDE COLETIVOS

                        Para eximir-se do dever legalmente imposto de regulamentar os reajustes periódicos nos planos de saúde coletivos, alega a ANS a sua incompetência para tanto fundada no suposto fato de que, em planos coletivos, igualdade de condições entre os contratantesambos pessoas jurídicas, de forma que não parte hipossuficiente na relação e devem prevalecer as disposições contratuais, ancoradas no princípio do pacta sunt servanda. Ainda supostamente, tal igualdade de condições conferiria melhores condições de negociação à pessoa jurídica contratante.
                        Não é válido o argumento esposado, pelo menos em relação à maioria dos contratos de planos de saúde coletivos.           Com efeito, a análise do atual quadro dos planos de saúde coletivos no Brasil atesta o fato de que a minoria absoluta deles é custeada integralmente por pessoa jurídica de direito privado com fins lucrativos; no mais das vezes, o que ocorre é a simples intermediação entre a pessoa jurídicanormalmente sindicatos, associaçõese o beneficiário direto do plano, que termina por arcar, ele próprio, com a totalidade ou a maioria dos custos atinentes.
                        Ainda, como, na maioria das vezes, a pessoa jurídica privada contratante é uma entidade sem fins lucrativos (como sindicatos ou associações de classe), não poderio financeiro desta na negociaçãoo que evidencia o abismo que as separa das contratadas, detentoras de força econômica suficiente para fazer prevalecer seus interesses.
                        Assim, cabe ao consumidor final o pagamento da contraprestação estipulada em negociação da qual não fez parte e que ocorreu sem qualquer relação de paridade entre as partes contratantes. Ressalte-se, a característica da maioria dos contratos de planos de saúde coletivos de verdadeiros contratos de adesão, na forma do art. 54 do Código de Defesa do Consumidor, o que denota a existência de uma parte mais poderosa na relação contratualaquela que impõe as cláusulas, por óbvio.
                        Sem a fixação dos reajustes pela ANS, o consumidor é submetido a  majorações impostas unilateralmente e ao livre alvedrio das operadoras de saúde sobre os valores da contraprestação devida. É claro, portanto, o prejuízo ao consumidor, desamparado pela ausência de regulamentação pela ANS neste campo, apesar de nada na lei guiadora da autarquia autorizar tal omissão, conforme exposto.
                        Vem sendo noticiado na imprensa nacional a brusca diminuição da oferta de planos de saúde individuais no mercado[4]. Tal fato deve-se precisamente à ausência de regulamentação acerca dos reajustes nos planos coletivos: as operadoras de saúde, para fugir ao controle, realizado pela ANS, sobre os reajustes de preços nos planos individuais, diminuem ou suprimem a oferta destes no mercado, forçando o consumidor que deseja contratar um plano de assistência suplementar à saúde a recorrer a planos coletivos por adesão. Nestes, sobre os quais não incide qualquer regulamentação normativa da ANS no que tange aos percentuais de reajustes, os aumentos chegam ao patamar de 35%, percentual superior ao quádruplo dos reajustes autorizados pela ANS para os planos individuais[5]. diminuem a oferta destes no mercado, forçando o consumidor que quer contratar um seguro sa
                        Verifica-se, portanto, a inviabilidade da autorregulação do mercado de planos de saúde coletivos. O ônus da desregulamentação recai inteiramente sobre o consumidor, que sofre a imposição de reajustes abusivos sem qualquer limitação, inclusive quanto à periodicidade dos reajustes. As operadoras de planos de saúde aproveitam-se da inércia regulamentar da ANS para impor exigências manifestamente excessivas ao consumidor, prática abusiva vedada pelo art. 39, V, do Código de Defesa do Consumidor.
                        A possibilidade de reajuste unilateral e ilimitado, inclusive, pode ser considerada cláusula contratual abusiva, nos termos do art. 51, IV, CDC, devido à iniquidade e abusividade inerente à cláusula desta natureza, que certamente impõe exagerada desvantagem ao consumidor e viola os princípios da boa-fé e da equidade. Por isso, cláusula e prática desta natureza também é abusiva devido ao evidente desacordo com o sistema de proteção ao consumidor (art. 51, XV, CDC). É clara, também, a abusividade de cláusula orientada neste sentido por permitir a variação unilateral direta ou indireta, pelas operadoras, dos valores do contrato, em flagrante desrespeito à disposição constante do art. 51, X, CDC.
                        Os altos reajustes redundam na expulsão de vários consumidores de planos de saúde coletivos, inclusive idosos. As operadoras, como forma de atrair os consumidores para os planos coletivos, oferecem valores atrativos para a contratação destes produtos. Posteriormente, valendo-se da lacuna normativa, majoram abusivamente o valor das mensalidades, muitas vezes antes mesmo do primeiro aniversário da celebração do contrato. Esta prática termina por acarretar a saída dos consumidores dos planos pela perda da capacidade financeira para arcar com as elevadas despesas; assim, os consumidores perdem a cobertura na rede médico-hospitalar privada e restam desassistidos. Conclui-se, por isso, que a desassistência dos consumidores que acabam expulsos dos planos coletivos por inadimplência (ou que retiram-se por não terem mais condições de adimplir suas obrigações com as operadoras) é resultado direto da ausência de controle, pela ANS, sobre os reajustes aplicáveis aos planos de saúde coletivo, em especial aos planos coletivos por adesão.
                        Ainda, há que se falar do prejuízo à livre concorrência, uma vez que, como já mencionado, a forte redução da oferta dos planos de saúde individuais força o consumidor a optar por planos coletivos, restringindo o seu campo de escolhas e favorecendo a dominação de mercado relevante pelas operadoras. A omissão da ANS em regulamentar os reajustes nos planos coletivos, desta feita, tem como consequência a dupla violação aos princípios norteadores da ordem econômica nacional: ao mesmo tempo em que se ofende a livre concorrência (art. 170, IV, CF), é violado o princípio de defesa do consumidor (art. 170, V, CF).

3. DO PODER REGULAMENTAR DAS AGÊNCIAS REGULADORAS

                        As agências reguladoras foram instituídas no ordenamento jurídico brasileiro como forma de catalisar a modernização do Estado, com o objetivo de controlar pessoas jurídicas privadas incumbidas da prestação de serviços públicos ou de atividades essenciais. Foram constituídas, também, de forma a ser instrumento da intervenção do Estado no domínio econômico, com a precípua função de evitar abusos neste campo e garantir a concreção dos princípios constitucionais norteadores da ordem econômica.
                        Dentre os poderes recebidos pelas agênciasconsubstanciados, como exposto, em deveresestá o poder normativo de regulação, ou, em outras palavras, o poder regulamentar. Embora inoportuno adentrar profundamente na semântica da expressãopoder regulamentar, cumpre salientar que, doutrinariamente, muito está superada a ideia de ser o poder regulamentar de exercício privativo do Chefe do Executivo. Hodiernamente, considera-se existir diversas ramificações do poder regulamentar, sendo apenas o poder regulamentar autônomo de exercício privativo do Chefe do Executivo; no que tange ao poder regulamentar das agências reguladoras, autores que o classificam como poder regulatório, espécie do gênero poder regulamentar, ainda que tal classificação não pareça de utilidade prática relevante. O que importa, ao final, é a certeza de que as agências reguladoras detêm poder-dever de regulamentar, de acordo com as suas competências legais, as disposições genéricas fixadas nas suas respectivas leis instituidoras.
                        Superado este ponto, colacione-se noção introdutória trazida por Alexandre de Moraes:

As Agências Reguladoras poderão receber do Poder Legislativo, por meio de lei de iniciativa do Poder Executivo, uma delegação para exercer seu poder normativo de regulação, competindo ao Congresso Nacional a fixação das finalidades, dos objetivos e da estrutura das Agências.[6] (grifo nosso)

                        A delegação, portanto, ocorre na própria lei instituidora da agência, que a transfere a competência para normatização técnica de determinado mercado, a ser realizada por atos infralegais[7]. Havendo tal delegação, surge o poder-dever normativo de regulação da agência reguladora.
                        O poder normativo conferido às agências reguladoras é justificado devido à especialização técnica inerente a estas autarquias especiais. O legislador ordinário, apesar de desejar a regulação normativa de determinadas atividades e serviços, não detém o conhecimento técnico necessário para fazê-lo satisfatoriamente. Desta forma, limita-se a instituir os parâmetros básicos e os fins colimadosna linguagem doutrinária, dá-se o delegation with standards, cabendo à agência a normatização técnica apta a viabilizar os objetivos definidos pelo legislador. Assevera José dos Santos Carvalho Filho:

O fundamento (da delegação de competência normativa por lei para ato regulamentar) não é difícil de conceber: incapaz de criar a regulamentação sobre algumas matérias de alta complexidade técnica, o próprio Legislativo delega ao órgão ou à pessoa administrativa a função específica de instituí-la, valendo-se dos especialistas e técnicos que melhor podem dispor sobre tais assuntos.[8]

                        Por isso, que se considerar a singularidade do poder regulamentar delegado às agências nas suas leis instituidoras:

A atividade de regulação de mercados econômicos estratégicos e serviços de imperativa relevância coletiva envolve delegação de uma série de funções, dentre as quais se destacam a fiscalização, o controle e, na hipótese em tese, a normatização.

Em especial, o poder normativo delegado às Agências Reguladoras tem singularidade ímpar, uma vez que, além da clássica função de complementação da lei, possuem certa margem de discricionariedade técnica, podendo ir além da mera regulamentação legal.[9] (grifo nosso)

                        Ocorre, assim, especialização normativa, vez que os regulamentos exarados pelas agências são capazes de imiscuir-se em particularidades técnicas que de outra forma não seriam atendidas pelo legislador ordinário. Nesta linha, Carlos Ari Sundfeld:

(...) sendo preciso normas mais diretas para tratar de especificidades, realizar o planejamento dos setores, viabilizar a intervenção do Estado em garantia do cumprimento ou da realização daqueles valores: proteção do consumidor (...) todos esses que hoje consideramos fundamentais e cuja persecução exigimos do Estado. É isso o que justificou a atribuição de poder normativo para as agências, o qual não exclui o poder de legislar que conhecemos, mas significa, sim, o aprofundamento da atuação normativa do Estado.[10] (grifos nossos)

                        O apuramento técnico dos regulamentos exarados pelas agências, portanto, serve como instrumento de garantia dos fins últimos visados pelo legislador na instituição da agênciano caso da ANS, por exemplo, a finalidade institucional é a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde através da regulação das operadoras, inclusive na relação com os consumidores (art. 3º, Lei 9.961/2000).
                        Em outras palavras, o poder regulamentar das agências reguladoras serve para conferir eficácia a leis existentes, com objetivos claros e delimitados, mas cuja finalidade pode ser alcançada apenas através de normatização técnica especializada. Desta feita, o objetivo precípuo da lei instituidora da ANSa defesa do interesse público na assistência suplementar à saúdeé efetivamente cumprido apenas quando ocorre a devida regulação das operadoras de saúde. A eficácia da lei que visa à defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde é condicionada à efetiva regulação deste mercado. É esse o significado extraído da lição de Leonardo Vizeu Figueiredo:

Ressalte-se que a obrigação se encontra genericamente prevista em lei, competindo à Agência Reguladora fixar os parâmetros necessários para sua aplicação específica no mercado (...) Outrossim, cumpre frisar que, embora a obrigação se encontre prevista em lei, sua eficácia encontra-se, total ou parcialmente, condicionada à edição de ato normativo regulador, o qual irá dotar a obrigação legal de aplicabilidade prática, tornando-a apta a produzir seus regulares efeitos jurídicos de forma positiva.[11] (grifo nosso)

                        A entidade a quem se delega tal competência não pode se eximir de regulamentar a lei, uma vez que verdadeiro dever de fazê-lo para que se viabilize a execução da norma jurídica. A omissão é, além, inconstitucional, que aceitá-la como possível equivaleria a atribuir à entidade a quem cabe a regulamentação o poder de legislação negativa em contrário. A inércia regulamentar é capaz de obstar a aplicação da lei, negando-lhe eficácia, o que, por óbvio, é ofensivo à estrutura dos Poderes da República[12]. Por isso, é pressuposto da realização da finalidade da agência o exercício da sua competência normativa, segundo assevera Alexandre Santos de Aragão:

Podemos ver, com efeito, que, apesar da maior ou menor magnitude de poder normativo legalmente outorgado nas suas esferas de atuação, todas as agências reguladorasumas mais e outras menospossuem competências normativas calcadas em standards, ou seja, em palavras dotadas de baixa densidade normativa, às vezes meramente habilitadoras, devendo exercer estas competências na busca da realização das finalidades públicastambém genéricasfixadas nas suas respectivas leis.[13] (grifos nossos)

                        Assim, diante do exposto e em apertada síntese, pode-se afirmar que o exercício do poder-dever normativo delegado às agências reguladoras é conditio sine qua non para o alcance do interesse público delimitado pela lei instituidora de cada agência, de modo que a regulamentação do mercado destacado por esta lei faz parte da própria razão de ser das agências.

4. DO PODER-DEVER DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

                        Preliminarmente, cumpre despender breves palavras acerca dos poderes-deveres da Administração Pública.
                        É certo que aos indivíduos, via de regra, é assegurada a faculdade de exercer os seus próprios direitos, expressamente consagrada no art. 5º, II, CF - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. O regramento pertinente à Administração Pública, entretanto, é diverso, uma vez que não existe faculdade no exercício de poderes legalmente designados, e sim obrigação de exercê-los. São, portanto, duas faces da mesma moeda: em uma delas, está o poder administrativo; na outra, o dever de exercê-lo. É esta a lição de José dos Santos Carvalho Filho:

Quando um poder jurídico é conferido a alguém, pode ele ser exercitado ou não, que se trata de mera faculdade de agir. Essa, a regra geral. Seu fundamento está na circunstância de que o exercício ou não do poder acarreta reflexos na esfera jurídica do próprio titular.

O mesmo não se passa no âmbito do direito público. Os poderes administrativos são outorgados aos agentes do Poder Público para lhes permitir atuação voltada aos interesses da coletividade. Sendo assim, deles emanam duas ordens de consequência: 1) são eles irrenunciáveis; 2) devem ser obrigatoriamente exercidos pelos titulares.

Desse modo, as prerrogativas públicas, ao mesmo tempo em que constituem poderes para o administrador público, impõem-lhe o seu exercício e lhe vedam a inércia, porque o reflexo desta atinge, em última instância, a coletividade, esta a real destinatária de tais poderes.

Esse aspecto dúplice do poder administrativo é que se denomina de poder-dever de agir.[14] (grifos nossos)

                        Na mesma esteira segue Dirley da Cunha Júnior:

(...) se para o particular prevalece a liberdade/faculdade de ação, para a Administração Pública existe um dever de ação, sempre que a ordem jurídica lhe impõe uma providência ou ela se mostre necessária em face das circunstâncias administrativas. Não pode, destarte, a Administração Pública deixar de praticar ato de sua competência, sob pena de responder por sua omissão na via administrativa ou judicial.[15] (grifo nosso)

                        Desta forma, assente a inexistência de qualquer faculdade da Administração Pública acerca do exercício ou não dos poderes a ela outorgados por leidelegado o poder, configurado está o dever de exercê-lo. A assertiva é válida, por óbvio, para qualquer entidade da Administração Direta ou Indireta, inclusive para as Agências Reguladoras, autarquias constituídas sob regime especial.


5. CONCLUSÃO

               Diante do exposto, resta assente a competência legal da ANS para regulamentar os reajustes nos planos de saúde coletivos. Além, não dúvidas de que o poder regulamentar legalmente outorgado é, na verdade, um dever de regulamentação. Salientou-se, ademais, os efeitos danosos da ausência de regulamentação neste campo ao mercado de consumo de forma geral e, em especial, aos consumidores. Por isso, configurada a omissão da Agência em exercer seu dever legalmente atribuído, urge que se proceda à regulamentação dos reajustes nos planos de saúde coletivo, notadamente nos planos coletivos por adesão, de modo que não se quedem desamparados os consumidores destes produtos, atualmente sofrendo várias lesões aos seus direitos básicos devido à inércia da Agência Nacional de Saúde.

LILIANE DA FONSECA LIMA ROCHA
Coordenadora do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Defesa do Consumidor do Ministério Público do Estado de Pernambuco

DAVI COZZI
Analista Ministerial do Ministério Público de Pernambuco
 



[1]              GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007, 13ª ed., p. 122/123.
[2]              ARAGÃO, Alexandre Santos de, op. cit., p. 394.
[3]              TRETTEL, Daniela Batalha. Planos de saúde na visão do STJ e do STF. São Paulo: Editora Verbatim, 2010.
[5]              Ibid.
[6]              MORAES, Alexandre de. Agências reguladoras. São Paulo: Editora Atlas, 2002, p. 20/21.
[7]              FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu. Lições de direito econômico. São Paulo: Forense, 2013, p. 186.
[8]              CARVALHO FILHO, José dos Santos, op. cit., p. 59.
[9]              FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu, op. cit.
[10]             SUNDFELD, Carlos Ari (org.). Direito administrativo econômico. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 27.
[11]             FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu, op. cit., p. 189.
[12]             CARVALHO FILHO, José dos Santos, op. cit., p. 63.
[13]             ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 408.
[14]             CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Editora Atlas, 2013, p. 46.
[15]             CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito administrativo. Salvador: Jus Podivm, 2013, p. 76.